Nossos povos indígenas constroem a escrita em suas línguas: para
eles, verter a cultura oral em palavras significa representar séculos ou
milênios de tradição. O resultado é muito material de qualidade que
merece espaço nas salas de aula, como conta a seguir uma testemunha
deste esforço, a antropóloga Betty Mindlin.
Por Betty Mindlin*
Os índios conquistaram muito espaço na literatura e no cinema nos últimos anos, em produções de alta qualidade.
A
tradição oral de nossos 200 povos e línguas – o número é aproximado,
sempre outros são descobertos – passa agora a versões escritas,
bilíngues ou em português; são de autoria indígena, ou
conjunta com estudiosos. O MEC publicou a partir dos anos 1990 mais de
cem livros de todos os cantos do país, resultado de programas de
formação de professores indígenas, com belas ilustrações. Há escritores
indígenas independentes, bastante conhecidos, que se unem em
associações; surgem livros produzidos por grupos de narradores orais que
não escrevem, nem falam português, mas são traduzidos pelos mais
jovens. Grandes exemplos são livros bilíngues como
Shenipabu Miyui – História dos antigos (autoria coletiva da Organização dos Professores Indígenas do Acre, 2ª edição revista, Editora UFMG, 2000) e
Wamrêmé Za’ra – Nossa Palavra: Mito e História do Povo Xavante (Senac São Paulo, 1998).
Felizmente, cada vez mais há material de qualidade para os professores brasileiros se aventurarem.
Nem sempre, porém, foi assim. Há três ou quatro décadas, quando
comecei a minha experiência com índios na Amazônia, fazia-se prioritário
demarcar as suas terras – as mesmas onde vivem há séculos e que ainda
hoje (ou, talvez, principalmente hoje) permanecem ameaçadas por
invasores e grandes interesses econômicos.
Desde o primeiro contato, fiquei maravilhada ao ver como viviam e perceber o sentido que imprimiam à existência.
Dediquei boa parte desses anos à defesa dos seus direitos e fui
acolhida como membro das comunidades pelas quais passei, sempre cercada
de afeto e generosidade.
Logo percebi que os mitos que ouvia, grandiosas narrativas povoadas pelos feitos e histórias de cada nação indígena, eram uma
literatura que saía elaborada, pronta, da voz das mulheres e homens mais velhos,
nascidos antes do contato pacífico com as cidades. Eram tão artísticos
como a melhor literatura brasileira impressa, e eu era a única, ou a
primeira, a ouvi-las.
Senti-me na obrigação de compartilhar essa beleza rara com leitores; fizemos juntos, então, vários livros: eu gravava nas línguas, transcrevia e traduzia em cada língua – e a escrita era minha; hoje, os professores indígenas passam a escrever eles próprios, em suas línguas e em português.
Vozes da origem, que teve a primeira edição pela Editora
Ática, em 1996 (e foi reeditado pela Record em 2006, com bonitas
fotografias), é expressão desse processo. Reuni nele a tradição dos
Suruí Paiter de Rondônia, que me foi contada ao longo de vários anos
pelos narradores mais velhos do povo. Uma década mais tarde, a antologia
Mitos indígenas
(Editora Ática) trilhou o mesmo caminho, em mergulho cultural profundo
pelas sagas de dez povos cujos narradores, embora não escrevam, recebem
direitos autorais – e, desta forma, são
legitimados como autores e senhores de suas histórias.
Penetrar no mundo indígena exige esforço por parte dos professores.
Os mitos e o imaginário são um bom começo,
pois as crianças não têm os mesmos preconceitos que os adultos e se
deixam enredar por conteúdos inusitados como a criação do mundo, cabeças
que voam e seres encantados. Além da literatura,
é preciso também reunir informações sobre as condições de vida dos índios – nisto, pode ajudar um livrinho que publiquei em coautoria com Fernando Portela chamado
A questão do índio (Editora Ática, 2004). Mas existem muitos outros, e sites completos, como o do
ISA – Instituto Socioambiental, que indica bibliografia, mapas, nomes dos povos, população, direitos.
Recomendo também aos professores que, além de lerem todos os livros sobre o tema que lhes caiam nas mãos,
vejam os magníficos filmes lançados há pouco. Destaco especialmente
Xingu, de Cao Hamburger, que retoma a heroica jornada dos
Irmãos Villas Bôas
para preservar a vida e as terras de povos que estavam sendo expulsos e
massacrados no Brasil central. Alcançaram em 1961, com muita luta, a
criação do Parque Nacional do Xingu, hoje denominado Terra Indígena do
Xingu. Cao transmite com maestria a beleza do mundo indígena, a
imperiosa necessidade de compreender e manter a diferença de modos de
vida. Assim,
vibra no filme, a todo instante, o desejo intenso de justiça social:
o coração dos espectadores bate disparado, na emoção de juntar-se aos
índios para que a humanidade não perca o que têm a nos ensinar.
*
As imagens que ilustram este post foram extraídas do DVD que acompanha o livro
As Histórias do Clã Gapgir ey e o Mito do Gavião Real (
Gapgir ey Xagah: Amõ Gapgir ey Iway Amõ Anar Segah ayap mi Materet ey mame Ikõr Nih),
de 2011, cujas histórias foram narradas por Gakamam Paiter Suruí e
outros coautores, transcritas e traduzidas pelos mais jovens de seu
povo. O trabalho, produzido com o apoio de diversas entidades, teve a
assessoria de
Ana Suelly Cabral, linguista do
LALI – Laboratório de Línguas Indígenas da UnB.
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*Betty Mindlin é economista e antropóloga. A partir
do doutorado em Ciências Sociais na PUC-SP (1977-1984), começou sua
longa trajetória de pesquisa e defesa das questões indígenas, que
resultou na publicação, no Brasil e no exterior, de diversas antologias
de mitos indígenas. No IEA – Instituto de Estudos Avançados da USP e no IAMÁ
– Instituto de Antropologia e Meio Ambiente, Betty participou de
projetos sobre cultura, educação e saúde dos povos indígenas. Em 2002,
recebeu a medalha de comendador da Ordem Nacional do Mérito Científico,
do Ministério da Ciência e Tecnologia.
Fonte: http://blog.aticascipione.com.br/leitura-literatura/duzentas-linguas-mais-portugues-a-literatura-indigena-nas-escolas