sexta-feira, 29 de março de 2013

Páscoa é passagem.

Páscoa é passagem
Lembroque o primeiro texto que tive coragem de mostrar para meu professor deportuguês foi sobre a páscoa. Eu tinha por volta de 16 anos de idade e fazia oprimeiro ano colegial (ensino médio hoje).
Vivendonum ambiente extremamente religioso e imbuído do espírito pascal que a escolame proporcionava, redigi uma redação onde colocava o que eu considerava overdadeiro sentido da minha fé juvenil: conversão, mudança, transformação.Falei sobre isso com a desenvoltura de um teólogo e tomei coragem de apresentarao saudoso professor Benedito, homem com espírito de mestre. Ele tomou meutexto nas mãos e leu sem esboçar nenhuma reação que demonstrasse gostar oudesgostar do que estava escrito. Ao final ele fitou-me nos olhos e disse semrodeios: - Vá reproduzir no estêncil a álcool e passe cópias para seus colegasde classe. Seu texto é muito emocionante!
Nãosoube o que dizer. Fiquei numa felicidade tamanha! Não consegui esconder meucontentamento, dei um forte abraço no professor e corri para o local ondeficava o mimeógrafo e as máquinas datilográficas. Eu queria ver meu textopronto. No dia seguinte entreguei para que cada colega de classe pudesse tê-loem mãos na hora da leitura conjunta. Não lembro muito qual foi a reação daclasse e, confesso, não me importava nem um pouco. A felicidade que sentia meenchia de satisfação e os olhos de meu professor marejando de emoção não saiamde minha cabeça.
Depoisdisso não recordo de ter escrito qualquer texto que tenha valido a penaenquanto durou minha vida escolar. O certo é que o olhar imperceptível de meuprofessor me fez um bem danado. Nunca disse isso a ele, mas sua atitudearrancou de mim o medo de escrever e, o que é mais difícil, mostrar a outraspessoas. Perdi o receio delas não gostarem ou criticarem meu estilo.
AquelaPáscoa foi para mim um momento marcante. Talvez tenha sido um sinal do queviria acontecer depois. Talvez tenha sido uma provocação divina para mim. Nãosei ao certo e nunca irei saber. Talvez tenha sido apenas a inspiração necessáriapara iniciar um caminho que sequer sabia qual era. Não importa. O fato é quecomecei a gostar da Páscoa pelo que ela representava para minha fé: um momentode passagem da morte para a vida; do sofrimento para a alegria; da angústiapara a liberdade; da solidão para a glória. Tudo isso passou a repercutirdentro de mim com a mesma certeza do olhar do professor que me fizera crer naminha capacidade de me comunicar de forma escrita. Nesse dia, eu tambémressuscitei. E passei a mirar os detalhes. E a notar as coincidências da vida.E a me abrir para o desconhecido. E a dizer sim sempre que o não era maisforte.
Desdeentão procuro não perder a linda celebração que antecede o domingo pascal. É umritual que enaltece toda a história da fé cristã. É uma celebração que emocionaporque me coloca em sintonia com o princípio de tudo. Penso que é a maisindígena de todas as celebrações da igreja, pois ela canta a história de umapessoa que viveu plena e radicalmente sua humanidade. No dizer de LeonardoBoff: “Jesus era tão humano que só podia ser Deus”.
FelizPáscoa a todos nós!

terça-feira, 19 de março de 2013

Na Amazônia, uma disputa entre cônsul e Ibama pelo livro sagrado.

Órgão multa holandês por captura de conhecimento indígena; estrangeiro nega.


Roberto Maltchik (Email · Facebook · Twitter)


Receitas xamânicas foram produzidas e compiladas em livro na língua nativa da etnia Kaxinawá, em aldeia (na foto) localizada no Baixo Rio Jordão (AC)
Foto: Divulgação/Ibama



Receitas xamânicas foram produzidas e compiladas em livro na língua nativa da etnia Kaxinawá, em aldeia (na foto) localizada no Baixo Rio Jordão (AC) Divulgação/Ibama

RIO - A ação de uma ONG baiana, presidida pelo cônsul honorário da Holanda em Salvador, numa terra indígena no Acre, quase na fronteira com o Peru, pôs o Ibama em alerta e se transformou em mais um rumoroso episódio de suspeita de acesso ilegal ao patrimônio genético da biodiversidade brasileira. Em jogo, o conteúdo de um livro da etnia Kaxinawá, com a linguagem e as receitas xamânicas relacionadas a 516 ervas medicinais, que teriam o poder de curar 386 tipos de doenças tropicais, especialmente provocadas pelo contato entre o homem e outros animais.
O caso remonta ao ano de 2010, quando o etnomusicólogo brasileiro Ricardo Pamfilio de Souza, financiado pela ONG Arte, Meio Ambiente, Educação e Idosos (Amei), entrou em contato com o pajé Augustinho, da Terra Indígena Kaxinawá do Baixo Rio Jordão (AC), uma das onze áreas oficialmente povoadas pela etnia em solo brasileiro. O Brasil tem cerca de 6 mil índios Kaxinawá. Outros 4 mil vivem no Peru.

Da conversa entre o visitante e o pajé, surgiu o projeto para publicar um livro, em língua nativa, cujo objetivo seria preservar a cultura e o Hãtxa Ruin — a língua dos Kaxinawá. Ocorre que, para “preservar a linguagem escrita”, Panfílio diz que o pajé Augustinho escolheu justamente o conteúdo secular das receitas xamânicas, o “Livro Vivo dos Kaxinawá”, um tesouro da biodiversidade amazônica que, inclusive, já foi alvo de estudos e publicações de botânicos brasileiros, mas com anuência do Conselho de Gestão do Acesso ao Patrimônio Genético (Cgen), presidido pelo Ministério do Meio Ambiente.

A Funai informa que não mediou o acordo entre a Amei e os Kaxinawá e que a comunidade não se beneficiou da ação. Para o Ibama, o livro “pode conter um conjunto de ‘senhas’ para usos de plantas medicinais brasileiras, potencialmente úteis à saúde humana e cobiçadas pela indústria farmacêutica mundial”.

Após mais de um ano de investigação, Pamfílio e Hans Joseph Leusen, empresário de 73 anos, cônsul honorário da Holanda em Salvador e presidente da Amei, foram multados, no ano passado, em R$ 100 mil, sob a acusação de usar o conhecimento tradicional para prospectar, ilegalmente, plantas com potencial uso comercial. Ambos tiveram acesso ao conteúdo do “Livro Vivo”, sendo que os originais continuam na aldeia.

Em 2011, durante operação do Ibama no Baixo Rio Jordão, o pajé Augustinho afirmou, de acordo com relatório da investigação ao qual o GLOBO obteve acesso, que Pamfílio teria armazenado informações em seu notebook com a intenção de produzir dois livros, um de ensino vegetal e outro, o “Livro Vivo”, que seria composto por relatos feitos na floresta pelo próprio pajé, apresentando as plantas e seus respectivos usos. Em meados de 2012, com fortes dores abdominais, o pajé Augustinho caminhou para floresta em um ritual de morte. Hoje, a publicação está embargada.
“Leusen e Panfílio desenvolveram ardiloso mecanismo para obterem dados do conhecimento tradicional associado do povo Kaxinawá, mediante sutil aliciamento de seu pajé, com vistas a terem posse de informações peculiares sobre como e para quais finalidades devem ser utilizadas espécies da flora brasileira, em evidente bioprospecção”, pontua trecho do relatório de investigação.
Mas o Ibama não conseguiu provar se houve transferência do conhecimento absorvido pela Amei para agentes de dentro ou de fora do Brasil. Pamfilio e Leusen recorreram das autuações, e o processo administrativo no Ibama será julgado nos próximos dias. O cônsul holandês demonstra revolta com a ação do Ibama, que classifica como equivocada.

— Esse processo já me custou uma fortuna de advogados por uma coisa que nós não fizemos. Nós não fizemos nada de errado e estamos sendo multados. Esse livro é feito pelos índios, e nós iríamos ajudá-los. É completamente diferente (do que o Ibama afirma). Dentro do processo não há prova! Eu sou o cônsul da Holanda, eu plantei 140 mil árvores na Mata Atlântica, eu ajudo idosos na rua e o Ibama vem destruir o meu nome! — protesta Leusen, que admite que a negociação ocorreu sem autorização da Funai: — Vamos ser honestos: quando você pede alguma coisa para a Funai, você não recebe resposta. Nós fomos lá e fomos convidados pelos índios.
A sustentação é corroborada por Pamfílio, ao ressaltar que a Constituição assegura a qualquer pessoa livre acesso à terra indígena, desde que haja convite formalizado pela comunidade.
— Eu comuniquei à Funai o convite dos índios. Não é uma investigação científica de bioprospecção. É um trabalho educacional indígena, cuja língua nativa está se perdendo. Não é acesso aos conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético. Nem eu nem o Hans conhecemos laboratórios ou conversamos com laboratórios. Eu só quero concluir o meu trabalho — afirma Pamfílio.

Questionado, o Ibama sustentou a versão do relatório: “temos uma reunião de provas obtidas ao longo de meses de investigação que fornecem a materialidade necessária aos processos instaurados de penalização”. O resultado da apuração foi encaminhado ao Ministério Público Federal, mas, como é uma infração administrativa, processo no MPF foi arquivado.


Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/pais/na-amazonia-uma-disputa-entre-consul-ibama-pelo-livro-sagrado-7862194#ixzz2NzxAsl4W
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sábado, 16 de março de 2013

Os 70 autores de Frankfurt

Jã estão definidos os 70 autores brasileiros que irão à Feira de Frankfurt. Nós estamos ali também.





PublishNews - 14/03/2013 - Redação
Comitê organizador divulga lista de autores brasileiros que irão à Feira de Frankfurt em outubro


Durante uma coletiva de imprensa na Feira do Livro de Leipzig, o comitê que organiza a participação do Brasil como convidado de honra na Feira de Frankfurt este ano anunciou a lista dos 70 autores que irá representar o Brasil em outubro, na feira. Os nomes foram escolhidos por uma comitiva composta pelo crítico literário Manuel da Costa Pinto, Antonio Martinelli, do Sesc-SP e Antonieta Cunha, diretora de Livro, Leitura e Literatura da FBN. Os critérios foram a diversidade e a pluralidade, o equilíbrio entre escritores consagrados e a nova geração, a variedade de gêneros (prosa; poesia; ensaio, biografia e crítica literária; literatura infanto-juvenil e obras técnicas e científicas) e a qualidade estética, privilegiando também autores que já foram publicados ou estão em vias de serem publicados no exterior. Dos 70 autores, apenas 19 não são da região Sudeste do país.
Comitiva dos autores brasileiros na Feira do Livro de Frankfurt 2013:
Adélia Prado (MG)

Adriana Lisboa (RJ)

Affonso Romano de Sant'Anna (MG)

Age de Carvalho (PA)

Alice Ruiz (PR)

Ana Maria Machado (RJ)

Ana Miranda (CE)

André Sant’Anna (MG)

Andrea del Fuego (SP)

Angela-Lago (MG)

Antonio Carlos Viana (SE)

Beatriz Bracher (SP)

Bernardo Ajzenberg (SP)

Bernardo Carvalho (RJ)

Carlos Heitor Cony (RJ)

Carola Saavedra (RJ)

Chacal (RJ)

Cíntia Moscovich (RS)

Cristovão Tezza (SC)

Daniel Galera (RS)

Daniel Munduruku (PA)

Eva Furnari (SP)

Fábio Moon e Gabriel Bá (SP)

Fernando Gonsales (SP)

Fernando Morais (MG)

Fernando Vilela (SP)

Ferréz (SP)

Flora Süssekind (RJ)

Francisco Alvim (MG)

Ignácio de Loyola Brandão (SP)

João Almino (RN)

João Gilberto Noll (RS)

João Ubaldo Ribeiro (BA)

Joca Reiners Terron (MT)

José Miguel Wisnik (SP)

José Murilo de Carvalho (MG)

Lelis (MG)

Lilia Moritz Schwarcz (SP)

Lourenço Mutarelli (SP)

Luiz Costa Lima (MA)

Luiz Ruffato (MG)

Manuela Carneiro da Cunha (Portugal - SP)

Marçal Aquino (SP)

Marcelino Freire (PE)

Maria Esther Maciel (MG)

Maria Rita Kehl (SP)

Marina Colasanti (RJ)

Mary Del Priori (RJ)

Mauricio de Sousa (SP)

Michel Laub (RS)

Miguel Nicolelis (SP)

Nélida Piñón (RJ)

Nicolas Behr (MT)

Nuno Ramos (SP)

Patricia Melo (SP)

Paulo Coelho (RJ)

Paulo Henriques Britto (RJ)

Paulo Lins (RJ)

Pedro Bandeira (SP)

Roger Mello (DF)

Ronaldo Correia de Brito (CE)

Ruth Rocha (SP)

Ruy Castro (MG)

Sérgio Sant’Anna (RJ)

Silviano Santiago (MG)

Teixeira Coelho (SP)

Veronica Stigger (RS)

Walnice Nogueira Galvão (SP)

Ziraldo (MG)



http://www.publishnews.com.br/telas/noticias/detalhes.aspx?id=72464

sexta-feira, 15 de março de 2013

Práticas Educativas no SESC Bauru - SP

Espero por vocês no SESC Bauru para um ciclo de encontros que tem por objetivo desmistificar a separação entre teoria e prática, vivenciar a diversidade e trazer para o dia a dia todas as possibilidades do aprender, sob perspectiva humanizadora. Destinado a educadores, profissionais e estudantes de educação física, dança, recreacionistas, técnicos esportivos, pedagogos e interessados em geral.



Xipat Oboré




segunda-feira, 11 de março de 2013

segunda-feira, 4 de março de 2013

A TEMÁTICA INDÍGENA EM SALA DE AULA

SESC Belenzinho
Dia(s) 16/03
Sábado, das 11 às 16h.

O encontro apresenta e discute a lei 11.645, que desde 2008 garante o ensino da temática indígena em todos os níveis de ensino. Buscando motivar os educadores a conhecer e praticar a lei e contribuir para a diminuição do preconceito e da exclusão social a que nossos povos foram submetidos ao longo da história, o encontro colocará em pauta o tema dos povos indígenas brasileiros e sua diversidade, a educação e arte indígena, entre outras questões. Orientação: Daniel Munduruku. Daniel Munduruku é graduado em Filosofia e doutor em educação pela USP. É comendador da ordem do mérito cultural da presidência da república e autor de 43 livros para crianças, jovens e adultos. Duração: 1 encontro. 30 Vagas. Oficina 3. Inscrições: dia 05/3 [TERÇA], pessoalmente, a partir das 14h, no estacionamento. Havendo disponibilidade de vagas, as inscrições seguirão no 1º pavimento a partir do dia 06/3 [QUARTA], às 11h.
Grátis

Fonte: http://www.sescsp.org.br/sesc/programa_new/mostra_detalhe.cfm?programacao_id=240899

sábado, 2 de março de 2013

A literatura indígena, segundo Daniel Munduruku (Entrevista para o Blog do Inst. Ecofuturo)



"O brasileiro precisa conhecer de verdade que o que ensinam para ele – sobre nossos povos e outros temas – é mentira", afirma Daniel Munduruku em entrevista exclusiva ao Instituto Ecofuturo. Autor de mais de 40 livros e um dos mais respeitados autores indígenas do país, Munduruku fala da vitalidade dos saberes ancestrais e de como os brasileiros, que são também indígenas na sua essência, ignoram tradições fundadoras da nossa própria identidade. À frente do Instituto Uka – Casa dos Saberes Ancestrais, o escritor acredita na força da literatura como “grito consciente e consistente” de povos cujas vozes foram, durante séculos, silenciadas e luta para que se cumpra a lei 11.645/08, que tornou obrigatório o ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira e História e Cultura Indígena nas escolas.
 
 
Como você descobriu a literatura, como leitor e escritor?
 
Nunca fui um exímio leitor. Descobri a leitura – e não a literatura – quando já era adolescente. Na escola religiosa em que eu estudava, tinha uma excelente biblioteca e isso me seduzia bastante. No entanto, os livros eram em sua maioria religiosos. Me peguei, assim, lendo biografias de santos; livros que tratavam de questões espirituais. Enfim, eram leituras que tinham a ver com minha formação dessa época de estudos. Um pouco depois passei a escrever alguns textos ligados à catequese e aos momentos de festejos religiosos. Lembro que o primeiro texto que escrevi e tive coragem de mostrar para meu professor de português foi sobre a páscoa. Ele achou tão bom que pediu que eu reproduzisse no mimeógrafo a tinta e distribuísse na paróquia no dia da páscoa. Para mim isso foi a glória. Eu tinha uns 16 anos. Depois disso, não lembro de nenhum outro texto que tenha escrito e se tornado público. Recordo-me, porém, que me tornei um leitor voraz de textos literários que me caíam nas mãos.
 
Como foi a sua experiência, ao se deparar com narrativas e representações tão diferentes das do imaginário indígena, que são aquelas veiculadas pelo cânone literário? Houve conflitos de alguma espécie?
 
Eu sempre fui muito curioso, desde criança. Nada me surpreendia no mundo imaginário de minha infância. Isso foi fundamental para que não tivesse problemas com as leituras posteriores. Eu entendia que a literatura era um devaneio de gente morta. Autor para mim era um ser distante, habitante de outro mundo. Algumas vezes achava que eles não eram humanos. O que me deixava furioso era como eles conseguiam “amarrar” tantos personagens numa história comovente e verdadeira. As histórias indígenas são muito bem elaboradas também, mas normalmente têm poucos personagens e não têm dramas tão elaborados. Lembro que chegava a perguntar para meus pais e avós sobre isso e eles diziam: “O homem branco não sabe ser simples”. Não entendia nada do que eles falavam naquela hora. Só entendi bem depois – o que me deixou bastante contente, pois era um pensamento muito coerente com a compreensão que tinham da vida.
 
A apropriação da escrita e da literatura, com todo o seu potencial transformador, pode aproximar diferentes etnias e funcionar como mediadora nos entrechoques de diferentes culturas? Como?
 
Tenho trabalho na perspectiva de que a literatura é um caminho de aproximação entre os diferentes povos indígenas. Mesmo sabendo que há uma grande diversidade de saberes e culturas, sinto que a literatura pode funcionar como elemento aglutinador, além de ser um instrumento para “soltar a voz” que tem ficado entalada na garganta de nossa gente ancestral. Nosso desafio é ajudar nossa gente a aprender a usar a escrita como porta-voz. Na medida em que isso for acontecendo, o que era apenas um murmúrio irá tornar-se um grito consciente e consistente.
 
De que forma os povos indígenas se apropriam da cultura escrita e como a utilizam em seu favor?
 
A escrita é uma técnica. A gente aprende a escrever. O que a gente tem é que fazer uma ligação entre o pensamento que domina a cultura e a escrita que congela este pensamento. Mas isso também é uma questão de tempo, de treino. Gosto de pensar que a gente indígena já tem a parte mais difícil introjetada no seu próprio ethos: o conteúdo a ser escrito. Temos trabalhado no sentido de ajudar nossos parentes indígenas a colocarem seus pensamentos no papel e dar a ele uma forma literária, acadêmica ou apenas como exercício de reflexão. Quando isso chega inteligível à sociedade brasileira, acreditamos que é nossa forma de contribuir para diminuir a exclusão social a que ainda estamos submetidos.
 
O que é literatura indígena e quais as abordagens narrativas que geralmente a caracterizam, se é que se trata disso?
 
Nós remamos contra a maré. Entendemos literatura indígena como o conjunto de manifestações culturais que são reproduzidas por nossa gente em seus rituais, desenhos, cantos, danças, rezas, etc. Fugimos um pouco da ideia de literatura como escrita. Queremos mostrar que este nosso jeito de comunicar é literário. Se pensarmos que no mundo literário é preciso que haja iniciados nele para compreendê-lo, podemos imaginar que nossa forma de fazer literatura é um código que a sociedade não indígena precisa aprender para poder nos compreender. Nosso esforço em compreender a sociedade brasileira passa pelo domínio das novas tecnologias (a escrita entre elas). É justo que a sociedade letrada pense no movimento de nossos corpos como literatura. Claro que estamos tentando aprender direito e adentrando no universo da literatura ocidental seguindo os cânones estilosos que nos propõem, mas queremos criar um jeito todo próprio de nos comunicar a partir desses instrumentos não indígenas.
 
Tributários que somos como brasileiros, de uma forte tradição indígena, que é parte constitutiva de nós mesmos, quais os estereótipos que ainda persistem na nossa “representação do índio” e como podemos superá-los, reconhecendo essa tradição como nossa ancestralidade?
 
A ancestralidade não é para ser pensada como algo atrasado e parado no tempo. Este é um dos estereótipos que estão presentes na mente brasileira. O mesmo se pode dizer da tradição. Este conceito está ligado a sociedades paradas no tempo. Não tem falácia mais imprópria. Isso tem que ser combatido com novos conceitos e vivências. É preciso que as pessoas entendam que não há nada de errado em respeitar o passado. O errado é negá-lo. Acontece que muita gente “olha para trás” para ver o passado. Os povos indígenas não fazem isso. O passado se une ao agora, ao presente. Não há nenhuma possibilidade de um indígena chorar o passado, pois ele sabe que este tempo é memorial. Ele não é real. Portanto, o brasileiro é um indígena essencialmente. O indígena é brasileiro apenas por acidente geopolítico. Por isso não entendo um país que não valoriza seus antepassados sem precisar chorar por eles, uma vez que eles estão no seu sangue. Por que isso acontece? Porque nunca ninguém disso isso ao brasileiro. A ele foi ensinado que índio é bicho, atrasado, incompetente no uso da terra, preguiçoso, desumano. Isso é ainda hoje ensinado – se não pelas escolas, em casa – ao inconsciente nacional. A mídia tem muita responsabilidade sobre isso, até mais que a escola. Aliás, a escola é sempre a última a receber notícias atualizadas sobre os povos indígenas; há muitas dezenas de anos que ensina a mesma coisa porque acredita que o que está estabelecido é a verdade absoluta. O brasileiro precisa conhecer de verdade que o que ensinam para ele – sobre nossos povos e outros temas – é mentira.
 
Em entrevista recente, você afirmou: “Um adulto, se quiser ler meus livros, terá que fazer um exercício para ouvir suas vozes ancestrais. Isso as crianças fazem sem esforço”. Por quê?
 
As crianças têm um canal aberto com sua ancestralidade. Elas são emotivas e conseguem chegar onde os adultos não chegam. Os adultos costumam ser bloqueados pelas vozes da escola, da economia ou da política. Isso os impede de “acordar” as memórias ancestrais que trazem em si. O adulto precisa se curvar a esta verdade, caso queira compreender a escrita indígena.
 
Se oferecermos, desde a primeira infância, a música dessa voz ancestral, teremos chance de formar adultos melhores, capazes de ouvir, respeitar e dialogar com essa voz?
 
Penso que crianças completas serão adultos completos. Ponto. Simples assim. A criança vem sem defeito de fábrica. Portanto, vem trazendo consigo todo o equipamento para viver bem. Acontece que ela cai num mundo que acha o contrário, pensa que ela vem sem nada e que precisa ser formada – colocada na forma – para ser “alguém” na vida. A solução do dilema é educar a criança para  ser criança e nada mais. Qualquer outra tentativa de fazê-la ser o que ela não pode ser vai transformá-la em adulto frustrado.
 
Uma das frentes trabalhadas pelo Instituto Uka – Casa dos Saberes Ancestrais é a Caravana Mekukradjá, que visa difundir a literatura indígena. Entre as atividades oferecidas, há cursos e palestras para professores sobre como trabalhar a questão indígena em sala de aula. Em linhas gerais, quais as orientações repassadas aos docentes?
 
Procuramos mostrar aos educadores exatamente o que dissemos atrás: tá tudo errado na compreensão de nossos povos indígenas. A gente tem que desconstruir o paradigma que eles trazem dentro de si, fruto da educação familiar e escolar. Fruto da universidade que não o ajudou a colocar algo novo em sua mente. Dizemos aos educadores que é preciso tratar a criança como criança e não como um investimento futuro. Dizemos que é preciso que o educador saiba que tipo de ser humano ele acredita estar formando. Aí questionamos as suas crenças, seus dogmas. Às vezes temos êxito, outras não. Isso faz parte do processo.
 
O Concurso FNLIJ Curumim chega este ano à sua 10ª edição. O que há para comemorar e quais os desafios ainda encontrados?
 
Comemoramos muitas conquistas. Uma delas é termos chegado à 10ª edição com muitos bons resultados. Este concurso, assim como outras iniciativas que mantemos, tem valorizado o professor que trabalha a temática indígena em sala de aula utilizando a literatura como instrumento. Faz com que o educador procure conhecer a produção literária dos indígenas brasileiros; ele influencia seus alunos; ajuda-nos a “corromper” a cabeça das crianças e jovens para aquilo que consideramos um ganho futuro: teremos adultos mais conscientes de seu papel numa sociedade multicultural como a nossa. Ainda assim, temos desafios. Temos que fazer as escolas e os educadores conhecerem a lei 11.645/08, que tornou obrigatório o ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira e História e Cultura Indígena nas escolas; temos que formar educadores para trabalharem a temática indígena de forma adequada; temos que organizar muitas caravanas para mostrar nossa produção literária. Daí a importância do Instituto Ecofuturo e do Instituto C&A, que são nossos parceiros nesta empreitada, porque, como nós, acreditam na possibilidade de formamos seres humanos mais compatíveis com a realidade multifacetada que hoje temos.
 
Além da literatura, quais outros instrumentos e expressões estéticas podem contribuir para a abordagem aprofundada da questão indígena?
 
Dizia mais acima que todas as manifestações da cultura indígena se prestam para a compreensão de nossa diversidade. Neste sentido é importante pensar estas manifestações como parte da cultura e não separada dela. A cultura é um conjunto. É bobagem tentar extrair dela elementos distintos. Uma cultura tem que ser compreendida em sua totalidade e não apenas através de suas manifestações. Quem faz isso é o ocidental, que aprende a dividir os conhecimentos em quadrados guardados a sete chaves. A nova escola tem que pensar no conjunto. O novo ser humano tem que ter isso claro. Caso contrário, ele não será novo.
 
 
Escritor indígena com 43 livros publicados, Daniel Munduruku é graduado em Filosofia, com licenciatura em História e Psicologia. Doutor em Educação pela USP, é Diretor Presidente do Instituto UKA - Casa dos Saberes Ancestrais. Pelo seu trabalho, recebeu diversos prêmios, no Brasil e no exterior, como o Prêmio Jabuti, Prêmio da Academia Brasileira de Letras, Prêmio Érico Vanucci Mendes (CNPq) e Prêmio Tolerância (UNESCO). Muitos de seus livros receberam o selo Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil – FNLIJ.
 
 
 
 Matéria original: http://www.ecofuturo.org.br/diadaleitura/blogdnl/show/876