sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Quem tem medo do bobo mau?

QUEM TEM MEDO DO BOBO MAU?
Daniel Munduruku
 
Estamos todos indignados com a fala do presidente a respeito dos povos indígenas. Sei que deveria estar também e estou. Estou sem estar, na verdade. Primeiro porque nunca imaginei nada diferente saído da boca de alguém com este histórico de vida. Segundo, porque não se pode esperar que nasçam pérolas de latrinas mentais. Terceiro, porque a formação que ele tem é tão pobre que ele só sabe repetir impropérios, embora ele não saiba o que isso signifique.
Seria como imaginar que ele pudesse nomear alguém para a área da cultura que não odiasse a cultura. Ou para a pasta do meio ambiente um ser que não fosse tão mesquinho, ignóbil e sem noção como o seu atual titular. O que se pode esperar de alguém que indica para o ministério da educação um quase analfabeto?
O infeliz, como se pode notar, nunca cresceu de fato. Ele é de uma geração que aprendeu preconceitos e estereótipos e não consegue se livrar deles porque isso exigiria que se tornasse tolerante, respeitoso, humano. Mas isso dá trabalho demais. Isso exige leitura demais e já sabemos que livros têm letras demais que lhe embaralha as ideias. Pensar cansa e ele está acostumado a cumprir ordens (de militares ou do Trump).
Peço que desculpem minha falta de indignação. É que, graças ao esforço de toda a sociedade civil organizada e consciente, um tipo como ele está sendo deixado para trás. Eu sei que está. Quando vejo as crianças ansiosas em aprender com nossas histórias; felizes por lerem nossos livros; satisfeitas por dançarem nossas danças ou verem os filmes que fazemos, uma esperança me invade. Quando vou às escolas e vejo a ação dos educadores acontecendo, sei que logo teremos uma geração capaz de dar uma resposta mais positiva, digna e humana a estes desmandos.
Continuemos a trabalhar. Governos passam, mas a história continua. Nossa gente sempre soube responder a esse tipo de pária social com mais empenho e participação. Com mais luta e resistência. Com mais arte e rito. Apenas digo: estejamos preparados para responder com criatividade. O que este energúmeno disse sobre nós é a cara dele e de seus asseclas. Isso nada tem a ver com a sociedade brasileira que nos vê como parte dela porque sabe que ela é parte de nós.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Eu proponho

Segue um texto de Socorro Lira que bem podia virar plataforma eleitoral para um candidato às eleições de 2020.

EU PROPONHO

Que o ministro das relações exteriores,
ao invés de produto interno bruto,
trate bem das questões interiores,
essas tantas isentas de tributo

Que se ocupe, o distinto Ministério,
em criar fundamentos exitosos
Sentimentos comuns aos hemisférios
com base em tratados amistosos

Eu proponho:
estabeleça-se a lei fundamental
sob os pressupostos da poesia
Que haja em toda casa uma recital
inda pela manhã e ao fim do dia

E que toda criança em formação
conheça, com prazer, um instrumento
e aprenda a tocar, com emoção,
os acordes do santíssimo invento

O presente decreto, faça-se cumprir em todos os povos
sob as penas da lei já em vigor,
pra que, em breve, se tenham humanos novos
a cuidar desse mundo com amor.
 

Socorro Lira 
Aquarelar, 2007. Edição da autora

domingo, 5 de janeiro de 2020


PARA ALÉM DOS MUSEUS, A MEMÓRIA
Daniel Munduruku

Recentemente foi noticiado o fato de que lideranças do povo Munduruku estiveram em um Museu de História Natural de Alta Floresta/MT de onde retiraram as “urnas funerárias” da instituição. As tais urnas haviam sido surrupiadas do território dessa gente quando da construção das Usinas Hidrelétricas Teles Pires e São Manoel.
Segundo consta, para a construção da referida barragem foram necessárias a destruição de lugares considerados sagrados pela gente Munduruku, apesar dos protestos e das negociações em curso para que tal ação não ocorresse, pois incidiria sobre a sua crença ancestral.
Conversa vai, promessa vem o consórcio vencedor do certame garantira que nada iria ocorrer sem a devida autorização dos indígenas Munduruku. Isso, claro, não foi cumprido. Aliás, não faz parte manter palavra para quem só pensa em dinheiro. O ato se consumou e as urnas foram retiradas e levadas para o museu acima citado.
Acontece que com as “formigas guerreiras” não se brinca e nem se faz promessa vazia.  Cerca de 70 guerreiros e guerreiras, alicerçados na crença de que não se pode prender os espíritos da natureza, se dirigiram ao Museu de História Natural de Alta Floresta – MT e reivindicaram a devolução dos objetos para seu lugar de origem.
O objetivo era muito claro: estabelecer o equilíbrio entre o homem e a natureza; devolver os espíritos para seu lugar de origem para que tudo voltasse ao seu estado normal. Somente assim a paz pode reinar.
Refletindo cá com meus botões fico imaginando o que passa na cabeça dessa gente que acha que pode colonizar a crença das pessoas; acha que pode entrar na casa dos outros e saquear tudo e ainda pensar que “está fazendo o bem”. Penso que há muito o que descolonizar para que, quem sabe, a gente consiga harmonizar nossas existências.
Para quem pensa que “objetos são apenas objetos” e que por isso podem virar produtos, costumo lembrar que, para além dos museus, existe a memória viva. É ela quem nos torna partes do mundo em que vivemos. É ela que nos permite compreender quem somos e porque estamos neste mundo. Nossa memória não tem preço. Nossos ancestrais estão vivos em nós. Sawé!
Quem desejar ler as justificativas dadas pelos Munduruku para sua ação de “reintegração sagrada de posse” basta visitar o site: https://movimentoiperegayu.wordpress.com/2019/12/30/resgate-das-itiga-pelo-povo-munduruku/?fbclid=IwAR0hmQ4HY1B49bJe2hKDv6xlektgsWMUGT1IYdrdVMZLbcOtHs4TUkXyGwY

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

O QUE ACONTECE À TERRA ACONTECE AOS FILHOS DA TERRA


O QUE ACONTECE À TERRA ACONTECE AOS FILHOS DA TERRA
(Daniel Munduruku)
Os sábios dos povos ancestrais costumam nos ensinar que todas as coisas estão ligadas entre si e que tudo “o que acontece à Terra acontece também aos Filhos da Terra”. Eles costumam lembrar que tudo está ligado como numa grande teia. Se algo acontece a um único fio, a teia inteira fica abalada.
Sei que a maioria das pessoas não conseguem compreender essa explicação por estar muito acostumada com a leitura da realidade a partir de seu próprio eu. Por conta disso não consegue admitir que a queimada da Amazônia ou da Austrália; a perseguição às lideranças populares ou às comunidades indígenas; o excesso de poluentes jogadas na atmosfera e o lixo plástico atirado nos oceanos; o assassinato promovido pelo presidente americano e o descaso com os direitos humanos do presidente brasileiro fazem parte de um mesmo movimento de destruição da vida, como a conhecemos.
A maioria não consegue perceber que o neoliberalismo é um sistema que nega o princípio do direito coletivo porque supervaloriza o egoísmo oriundo da falsa ideia do mérito individual.
Precisamos voltar a acreditar que somos parte da teia da vida; somos um dos seus fios; apenas um fio, mas sem ele a teia fica incompleta. Precisamos voltar a acreditar que o que acontece há dezenas de milhares de quilômetros têm a ver diretamente com cada um de nós.
Estou dizendo isso para lembrar que não podemos ficar indiferentes aos acontecimentos globais. Não podemos e nem devemos aceitar que uma única versão de história nos impunha a verdade. Não devemos aceitar que um sistema financeiro dê ordem sobre todas as outras formas de fazer economia. É assim que penso. É assim que ajo. É para isso que trabalho. Não admito fechar os olhos para tudo o que acontece ao meu redor, especialmente se fere a dignidade da pessoa humana e dos seres não-humanos.